Além de complexo, o câncer é diverso. O termo abrange mais de 100 diferentes tipos de doenças malignas que têm em comum o crescimento desordenado de células, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Apesar dessa característica, o câncer é vivenciado de forma singular: cada paciente tem uma jornada única. Nesse caminho, ele pode se deparar com maior ou menor acesso ao tratamento, a redes de apoio e a suporte no ambiente de trabalho.
A seguir, especialistas e pacientes listam cinco aspectos que dificultam o enfrentamento ao câncer no País e o tratamento equitativo de quem é diagnosticado com a doença.
Desinformação
O câncer de colo de útero é um dos principais desafios da saúde pública no Brasil. A cada ano, são registrados mais de 17 mil novos casos desse tipo de tumor e mais de seis mil óbitos devido ao quadro. Quase 100% dos diagnósticos estão relacionados à infecção pelo HPV.
O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece, há mais de uma década, o imunizante contra esse microrganismo para crianças e adolescentes de 9 a 14 anos. A meta do Ministério da Saúde é imunizar 90% dessa população, porém, em 2024, apenas 82,8% das meninas e 67,3% dos meninos nessa faixa etária receberam a vacina.
Diretor de Governança Clínica do A.C. Camargo Cancer Center, Antonio Antonietto pontua que a baixa taxa de cobertura da vacina, que protege contra o câncer do colo do útero e também contra o câncer de pênis, entre outras doenças, está relacionada a movimentos antivacina e à desinformação: “Ela sofre resistência porque muitos acreditam, equivocadamente, que estimula a sexualidade precoce.”
Falta de diversidade nas pesquisas
O coordenador de Pesquisa Clínica em Oncologia do Hospital Sírio-Libanês, Guilherme Harada, afirma que o número de pessoas pretas incluídas em estudos científicos é de cerca de 2%. Além do prejuízo para os pacientes, a falta de diversidade limita o conhecimento sobre diferenças essenciais para a oncologia.
“A população negra sofre historicamente com iniquidades sociais, econômicas e de saúde que afetam suas vidas ao longo de gerações. Essas condições deixam marcas epigenéticas no corpo”, completa Jessé Lopes, membro fundador do Comitê de Diversidade da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).
Lopes destaca que a análise do câncer precisa considerar a autodeclaração racial dos pacientes e a ancestralidade, e os estudos nessa área são fundamentais para entender o comportamento mais agressivo da doença em determinados grupos.
Prevenção desigual
Uma pesquisa sobre a realização de mamografia e papanicolau nas capitais brasileiras mostrou que o rastreamento do câncer de mama e do câncer do colo do útero ocorre de forma desigual no País.
Segundo o estudo, publicado na revista Epidemiologia e Serviços de Saúde, a realização da mamografia foi 5,2 pontos percentuais maior entre aquelas com maior escolaridade, e a realização do papanicolau foi 5,3 pontos percentuais menor nas mulheres autodeclaradas pretas.
“Quando falamos de equidade, é preciso olhar para quem tem menos condições. Ainda vemos inúmeras dificuldades para conseguir diagnósticos, tratamentos e acompanhamentos”, lamenta Luciana Holtz, fundadora e presidente do Instituto Oncoguia.
Redes de apoio pouco diversas
Moradora de Niterói (RJ), a universitária Priscila Anastacio, de 51 anos, iniciou o tratamento contra o câncer de mama em 2023. Desde então, passou por quatro ciclos de quimioterapia vermelha a cada 28 dias, 12 ciclos de quimioterapia branca semanais e 15 sessões diárias de radioterapia. Nessa jornada, ela conta ter sentido falta de redes de apoio organizadas para abordar a questão racial, e buscou suporte em conversas com outros pacientes por meio das redes sociais.
Priscila descreve que a sociedade precisa pensar nas especificidades dos corpos pretos. “As próteses capilares acessíveis são sempre de cabelos lisos. Para as mulheres pretas, é uma barreira enorme. As luvas e braçadeiras também são feitas para peles claras. Tudo fica muito visível e chamativo para nós. Temos que nos submeter ao que o mercado oferece”, critica a paciente.
Preconceito no mercado de trabalho
Uma pesquisa publicada em 2024 pela revista Cancer Research analisou o retorno de mulheres ao mercado de trabalho após o tratamento do câncer de mama. Das 266 participantes que estavam empregadas antes do diagnóstico, 31,2% não voltaram ao trabalho em dois anos, e 37,5% relataram dificuldades no retorno ao ambiente profissional.
No Brasil, o movimento é similar. Em um estudo publicado em 2018 no periódico Cancer, apenas 29,1% das brasileiras com câncer de mama entrevistadas receberam ofertas de adaptação dos empregadores.
A presidente da Comissão de Defesa dos Direitos dos Pacientes Oncológicos e em Cuidados Paliativos da OAB-RJ, Solange da Cunha Pacheco, observa um estigma em torno das pessoas com a doença, que temem obstáculos na volta ao trabalho.
“O retorno ao trabalho é muito difícil. Quando a pessoa recebe o diagnóstico de câncer, parece que já tem a data marcada para a morte. Muitos, não só no ambiente profissional, começam a evitar o paciente, como se já o excluíssem da lista de amigos e parceiros de trabalho, imaginando que ele ficará totalmente inválido”, reforça ela, que já enfrentou o tratamento contra o câncer de mama.
A advogada explica que o câncer reduz a disposição, porém não anula e nem paralisa o trabalhador. “Há muitas restrições principalmente porque as pessoas criam barreiras: o empregador, que já rotula o paciente, e os parceiros de trabalho, que começam a privá-lo de algumas atividades para ‘poupá-lo’ e acabam fazendo com que ele se sinta incapaz”, observa.
“A palavra ‘câncer’ ainda carrega um peso enorme”, avalia Antonio Antonietto, do A.C. Camargo Cancer Center. “Pacientes recebem solidariedade de vizinhos, amigos e colegas de trabalho, o que não impede discriminações veladas. O câncer não pode derrotar a pessoa: deve ser tratado como uma doença que, em muitos casos, permite uma vida normal. Precisamos desconstruir o olhar da sociedade, que enxerga o paciente apenas como um ‘coitadinho’”, acrescenta.
Solange reforça que há casos em que o Ministério do Trabalho e Emprego precisa intervir para reintegrar as pessoas às empresas, sobretudo no desligamento após o auxílio-doença, quando o paciente não é aposentado por invalidez.
No Brasil, a demissão de um empregado com câncer, durante ou após o tratamento, é presumida como discriminatória pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), cabendo ao empregador provar que a dispensa foi ocasionada por outro motivo. Essa proteção se alinha à Lei nº 9.029/95, que proíbe o preconceito no ambiente de trabalho.
“Quando a pessoa pensa que vai retomar uma vida normal, sofre novamente por conta da discriminação do empregador. Normalmente, a empatia só aparece entre pessoas que já vivenciaram a doença na família ou com amigos”, reconhece a advogada Solange da Cunha Pacheco, que escreveu o livro De bem com minha careca a partir do seu tratamento.
A especialista afirma que a reinserção no mercado de trabalho significa a retomada da autoestima. “É fundamental que o paciente saiba que o câncer não é o fim.”
Fonte: Estadão
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